Creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo; e eu digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha n'Ele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade. (Dostoievski)

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10 de out. de 2007

Hildo Honório do Couto [1]

Partindo de um fato óbvio
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“Português é difícil demais”, “o português é a língua mais difícil do mundo”, “Português é a matéria mais chata!”, etc. Frases como estas são ouvidas a todo instante por professores de português. São ditas não só por estudantes. Mas até mesmo pelo leigo, ao verificar que está diante de um professor. Será verdade o que elas expressam?

Com efeito, assuntos como “colocação pronominal ” (“me dá” vs. “dê-me”), “análise sintática”, “acentuação gráfica”, “uso do hífen” e “regência verbal” constituem verdadeiro tormento para os estudantes e até mesmo para os experimentados. Além disso, há um consenso generalizado entre os estudantes e os profissionais de áreas técnicas de que não conseguem “escrever bem”, são incapazes de fazer uma “redação boa”, etc. A reintrodução desta no vestibular teve como conseqüência a eliminação de muitos candidatos a um curso na universidade.

Em síntese, nós brasileiros, achamos que “a gente fala tudo errado mesmo!”, “se a gente quiser falar de acordo com a gramática fica muito difícil!”, etc. Por aí já se vê que “a gramática” é uma coisa estranha, hostil, que se impõe de fora para dentro ou de cima para baixo. Não é a sistematização de como o brasileiro usa a língua portuguesa.

Tudo isso prova que há um fosso entre aquilo que querem impor de cima para baixo como “português correto” e o que o povo efetivamente usa, tanto oral quanto graficamente, tanto no caso das pessoas cultas quanto no das analfabetas da cidade e no dos roceiros (ou camponeses, se preferirem). O próprio professor de português se sente perdido, pois se vê entre fogos cruzados. De um lado tem na cabeça tudo aquilo que estudou na universidade e que se espera que transmita aos seus alunos. De outro, percebe que a realidade lingüística concreta é bem diferente.

Eu já tive o desconforto de ouvir de uma aluna do ensino médio de São Paulo que gostava muito de escrever contos, poesias e até ensaios simples sobre assuntos que interessavam a ela. No entanto, acrescentou "não gosto de português, é muito complicado". Como professor de português me senti bastante frustrado e, na época, não sabia o que se passava. Só hoje percebo que "português" para ela não era língua em que ela escrevia, por sinal até muito bem. Isso é mais uma prova do divórcio existente entre o querem nos impingir como "português correto" e o português brasileiro real, mesmo culto.

Será que aprender "português correto" é tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira como, por exemplo, o espanhol? Com efeito, construções como "Se vós não no-lo trouxerdes" soam estranhas ao ouvido do menino da região urucuiana de Minas Gerais, por exemplo, como "Yo no lo quiero".

Na realidade, o que está havendo é uma série de distorções devidas a uma mentalidade elitista, centralizadora, típica de uma sociedade burguesa capitalista, especialmente subdesenvolvida, em que uma pequena minoria a serviço das classes dominantes se arvora em juiz do "português correto". Em países como Alemanha, Inglaterra e França o problema não aparece ser tão grave como no Brasil. [NOTA DA MAYA: Acho que na Europa, e posso falar da França, o problema é gravíssimo. Há um distanciamento colossal entre a língua que se fala e a que se aprende nas escolas] Em suma, os formuladores da política do ensino no Brasil não percebem o óbvio, eles vêem a realidade ideologicamente distorcida. O fato óbvio é o seguinte:
a língua de uma comunidade é a língua usada por esta comunidade.
Sabemos que uma língua só existe se há uma comunidade que a use e que um agrupamento de pessoas só constituirá uma comunidade se tiver uma linguagem comum que possibilite a orientação do comportamento em grupo. Do contrário não é possível o intercâmbio entre os membros da comunidade, nem a nível infra-estrutural nem a nível superestrutural, pois os indivíduos não saberiam o que não prejudica (e por que) e o que prejudica (e por que) o outro. Haveria atritos constantes.

E assim chegamos à conclusão de que a linguagem de uma comunidade não é só a verbal (a língua), mas é composta de uma série de outros meios de comunicação como, por exemplo, a mímica, a etiqueta, as relações sociais em geral, as instituições, etc., etc. De qualquer maneira, a língua é o tipo de linguagem mais importante. Portanto, vou me restringir a ela.

Aplico ao caso brasileiro, o fato óbvio enunciado acima continua óbvio: a língua do povo brasileiro é uma língua usada pelo povo brasileiro. Apesar de óbvio, esse fato é sistematicamente esquecido ( ou não levado em conta) pelos planejadores e executores do ensino de português no Brasil. E isso se deve, como já disse, ao fato de encararem a realidade a partir de uma ótica ideologicamente distorcida.

Qualquer pessoa com razoável nível de informação sabe que a língua efetivamente usada pelos brasileiros em sua totalidade não é um bloco homogêneo e compacto. Pelo contrário, todos sabemos que ela apresenta diversas diferenciações (ou variações, como dizem os sociolingüístas), as quais resultam do contato com o ambiente. Se este for complexo, a língua também o será. Assim, do contato dela com o ambiente físico (o espaço geográfico em que é falada), resultam as diferenciações regionais, como é o caso do português lusitano, do brasileiro, do angolano, do moçambicano, do guineense, etc. No interior de cada país há também diferenciações regionais. No Brasil, temos o falar mineiro, o carioca, o gaúcho, etc.

Do contato da língua com o ambiente social, resultam dois tipos de diferenciações. Sabemos que o português dos trovadores medievais, o da época de Camões e o atual são consideravelmente diferentes entre si, apesar de se tratar da mesma língua. Trata-se das diferenciações históricas ou temporais. A linguagem de uma mesma cidade apresenta, simultaneamente, pelos menos três tipos de diferenciações. Com efeito, numa cidade como São Paulo, por exemplo, temos que distinguir a linguagem do operário analfabeto, a do favelado, por um lado, e a linguagem oficial, ensinada nas escolas, a que se usa nos livros, na imprensa, por outro lado. No meio das duas está a linguagem que poderíamos chamar de média. São as diferenciações de classe (lembremo-nos de que nossa sociedade de classes). A linguagem rural pode ser classificada com a dos favelados e dos analfabetos urbanos em geral. Para facilidade vou me referir a ela através das letras A (culta), B (média) e C (dos favelados e caboclo). Com o que se verifica que as diferenciações espaciais se entrecruzam com as sociais e de classe.

Cada uma dessas diferenciações apresentam espeficidades que a individualizam frente às demais. Assim, todos sabemos que a linguagem de um operário é diferente da de um alguém que trabalhe em emprego burocrático e da de um texto filosófico, por exemplo. Apesar disso ninguém diria que o operário ou o caboclo não fala português.

Quando o estudante de letras inicia seu curso, em geral, entra em contato com a literatura portuguesa medieval, ou seja, a lírica trovadoresca das cantigas de amigo, de amor, de escárnio, de mal-dizer, etc. Camões também faz parte integrante de seu curso. Pois bem, não obstante serem todos esses tipos de linguagem diferentes, todos nós os aceitamos como modalidades da língua portuguesa.

O gaúcho tem consciência nítida de que fala diferente do baiano, do mineiro, do cearense e vice-versa. Todos eles em conjunto, ou seja, os brasileiros em sua totalidade sabem que falam bem diferente dos portugueses e dos angolanos, etc., embora saibam que se trata de língua portuguesa em todos os casos.

Assim como não há comunidade sem linguagem nem linguagem sem comunidade, cada segmento, aspecto ou subcomunidade de uma comunidade tem sua peculiaridade lingüística, sua sub-linguagem. Não reconhecer isso é falsear a realidade, o que pode acarretar danos incalculáveis. Não se pode ignorar as diferenciações espaciais, temporais e sociais que toda língua de sociedade complexa apresenta.

Como se vê, mesmo para o leigo o português brasileiro em sua totalidade é uma realidade muito complexa; ele está muito longe de ser aquela língua compacta que os juízes lingüísticos querem nos impingir como sendo “o português correto”. Pelo contrário, como toda realidade complexa, o português brasileiro (para não dizer o português em geral) é uma totalidade composta de diversas subtotalidades, cada uma delas com suas especificidades e partes componentes.

Como ficamos, então, diante do fato óbvio enunciado acima? Se a língua dos brasileiros é a língua usada pelos brasileiros em sua totalidade, o que é, afinal, de contas, o português brasileiro? Obviamente, a língua dos brasileiros em sua totalidade é o complexo que abrange todas essas modalidades, como veremos adiante.

Na verdade, o problema todo surgiu do fato de as classes dominantes, sempre ativas a fim de manter o controle sobre a população, tentarem impor apenas uma daquelas modalidades como se fosse “o português brasileiro”. Por outras palavras, sempre tentaram distorcer ideologicamente a realidade (que em si é complexa) impondo um aspecto, uma parte apenas do português como se fosse o todo, a norma geral.

Num passado não muito distante, tentaram impor a linguagem no Rio de Janeiro como a norma geral do Brasil todo. Nas gramáticas e nos dicionários se tenta impor como a norma geral de nossa época a linguagem dos clássicos, isto é, de épocas passadas. No fundo, no fundo, tudo isso desemboca na constante tentativa de se impor a linguagem das elites (ou, pelo menos, a linguagem que elas acham que deve ser imposta) ao povo brasileiro como um todo.

Diante de tudo o que foi dito acima, constatamos que ao determinar o que deve ser “o português correto”, a norma lingüística do Brasil, as classes dominantes (através de seus prepostos, os gramáticos e filólogos) perpetraram três tipos de distorções da realidade, todas elas geradoras de conflitos insolúveis:
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1 - distorção espacial
2 - distorção temporal
3 - distorção social

A distorção espacial consiste na imposição da linguagem de uma região (ou de um país) a todo o país (ou a outro país).

A distorção temporal, por seu turno, consiste em querer impor a linguagem de épocas passadas como sendo a norma geral atual.

A distorção social, finalmente, se patenteia na imposição da linguagem de uma classe (aquela que toda a elite dominante considera a melhor) a todas as outras. A conseqüência é que todas estas falariam “errado” , sua linguagem seria um “desvio” da “boa linguagem”. Poderíamos falar até em distorção grupal, que seria a imposição da linguagem de um grupo (o dos gramáticos) a toda comunidade.

Vê-se, portanto, que se trata sempre de querer impingir uma parte como se fosse o todo. Trata-se sempre da tentativa de impor a linguagem de uma parte da comunidade de língua portuguesa como se fosse a língua dos brasileiros em sua totalidade.

O leitor deve ter notado que falei em “tentativa” de impor e não em “imposição”. De fato, os planejadores e executores da política educacional nunca tiveram êxito. Pelo contrário, o que vemos todo dia é um sentimento de frustração, por parte deles, e de revolta, por parte dos estudantes, diante do conflito entre o que querem impor como “a boa linguagem” e a linguagem real. Aqueles se sentem frustrados por verem que suas tentativas de impor, de “ensinar a boa linguagem” são infrutíferas. Estes se revoltam não correspondendo ao “ensino” daqueles, o que já transparece nas frases que citei logo no início deste capítulo. As conseqüências são as mais danosas possíveis, como veremos mais adiante. E tudo isso se deve ao fato de ignorarem o óbvio.

De modo geral, podemos dizer que o problema todo se resume numa questão: o que é a norma geral do português brasileiro? Ou não há norma geral? Isso estaria em contradição com a idéia de “português brasileiro” como uma totalidade.

O que se quer é que se respeite o óbvio, que se respeite o fato de que a língua dos brasileiros como um todo é a língua usada pelos brasileiros como um todo. Por mais complexa e cheia de diferenciações, de subpartes que ela seja, sempre se poderá falar em português brasileiro como uma totalidade. Esse português brasileiro não se identifica com nenhuma das modalidades, subtotalidades ou parte expostas acima. Por conseguinte, examinarei detalhadamente cada uma das distorções oriundas dos deslocamentos de ótica praticados pela ideologia dominante (e a ideologia sempre foi a das classes dominantes). Em seguida, examinarei a questão da norma e, finalmente, mostrarei algumas conseqüências dessa deformação ideológica para o ensino de português no Brasil, sobretudo o da redação.

Como você poderá verificar, caro leitor, minha intenção ao escrever este livro não foi acumular dados históricos, bibliografias, etc. Não passou pela minha cabeça fazer uma obra de erudição. Isso pode ser encontrado na já vasta literatura sobre o assunto (veja as “Indicações para Leitura”!).

Meu objetivo é bem mais modesto. O que pretendo fazer é sugerir uma ótica mais adequada para encararmos o fenômeno linguagem, sobretudo a língua portuguesa do Brasil. Por ótica mais adequada entendo uma perspectiva sem distorções ideológicas (temporal, espacial e social). Uma boa metodologia é aquela que não manipula os fatos para fazer encaixem em moldes pré-fabricados. Do ponto de vista científico, às vezes é mais importante estudar um domínio restrito da realidade com um bom aparato teórico do que estudar vastos domínios da mesma realidade com uma teoria e metodologia capengas ou distorcidas.

A miopia científica e também o comprometimento com os eventuais detentores de poder por parte dos planejadores e executores da política de ensino do idioma não lhes permitem perceber que uma mudança radical de atitude se faz necessária. Enquanto persistirem em não perceber isso o que veremos será sempre palavrório oco, balelas, em congressos e encontros nacionais e internacionais que discutem o sexo dos anjos, mas que nada mudam na realidade concreta, pelo simples fato de a ignorarem. Com efeito, distorcer, uma realidade é o mesmo que não reconhecê-la.

É preciso descobrir a ferida que os donos do poder teimam em manter coberta. Sem sabermos que ela existe não há a menor possibilidade de cura.

COUTO, Hildo H. do. O que é Português Brasileiro. 5 edição. São Paulo: Editora Brasiliense: Coleção Primeiros Passos. Paginas 7 a 17.
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NOTA: O professor Hildo foi meu prof. de Introdução à Lingüística, na UnB... Eu me lembro bem, 1990, as aulas eram às 14h, depois do almoço, eu morria de sono. Quando ele colocou no quadro, pela primeira vez, os eixos sintagmático e paradigmático... Achei que estava em Marte. Perdão, professor Hildo, se o senhor ler estas mal traçadas linhas, mas não sei, até hoje, como fui aprovada naquela disciplina.

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